De vilão, vítima e herói, todos nós temos um pouco
Reflexões de uma identidade em crise.
Sou uma agradadora nata, nascida e criada na necessidade de evitar conflitos e não causar incômodos alheios, a despeito do meu próprio incômodo. Então, a última coisa que eu sempre quis era ser malvista (ou mal interpretada) por alguém. Claro que isso é uma utopia, e por isso tenho buscado - com muito esforço e terapia - acolher esse desconforto e lidar melhor com ele.
Afinal, quando conseguimos entender que, por mais bem intencionados, por mais que tomemos todas as precauções, haverá momentos que seremos considerado o vilão da vida de alguém, nos libertamos. Nos libertamos das amarras da crítica e isso nos permite, também, escutar a nós mesmos. No sentido de sermos mais verdadeiros com nossas escolhas e anseios. Quantas vezes deixamos de escolher um caminho que faz sentido para nós porque temos medo de ir contra o que alguém pensa? Por que achamos que vamos machucar alguém com aquela decisão? E quantas vezes tentamos tomar uma decisão que se adeque às necessidades de várias pessoas, e acabamos perdemos a essência do que buscamos para nós mesmos?
Não estou aqui, veja bem, falando em sermos puramente egoístas. Em fazer só o que estamos afim sem pensar nas consequências para nossa vida e a do outro. Mas em, na equação da tomada de decisão, pesarmos mais para nosso lado. Porque, afinal de contas, quem há de viver essa vida somos nós.
Outra questão passa pela necessidade que as pessoas possuem, incluindo nós, de buscar culpados externos para os seus problemas. Para toda pessoa que se coloca como vítima, há identificação de um salvador e um vilão. Então, de fato, muitas vezes você será eleito o vilão da vez, simplesmente para tornar menos pesado a culpa de alguém por uma decisão errada, por exemplo. Isso é muito comum, ou você nunca descobriu que alguém estava com raiva de você por algo que você nem sabia? Já aconteceu comigo, e quando eu tive a possibilidade de colocar a situação em perspectiva para a pessoa, percebemos que eu estava recebendo toda culpa, quando na verdade parte da culpa era dela e parte de uma terceira pessoa que ela, apesar do que tinha acontecido, queria preservar como seu herói…Coisas da vida!
O fato é que para termos essa clareza precisamos também entender duas coisas importantes: Primeiro, que não controlamos tudo (apesar de minha iludida mente muitas vezes achar que sim!), principalmente quando se trata do que se passa na cabeça do outro, só o que conseguimos controlar é nossa intenção nesta comunicação. Segundo, que as pessoas são livres para entender a vida da maneira que lhes convém e, por mais iluminados que achemos que somos, não somos nós, alecrins dourados, que vamos conseguir mudar ninguém. As pessoas amadurecem no seu próprio ritmo e, muitas vezes, movidos mais por experiências próprias, do que por conselhos recebidos. Logo, haverá ocasiões em que não adianta gastar nosso português para convencer alguém que ela tem uma má interpretação sobre sua pessoa. Ela poderá, simplesmente, não estar aberta para isso e, paciência! Cabe a nós nos conformarmos com a sinceridade de nossas intenções e dormir com a cabeça tranquila por isso.
Essa questão da imagem que temos e que projetamos do mundo é um tema interessante. Numa obra do sociólogo jamaicano Stuart Hall ele comenta “…se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construimos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do eu”. E nessa “narrativa do eu” somos, eventualmente, as mocinhas e mocinhos. E para cada mocinha, há de haver um herói e um vilão! Maturidade é quando reconhecemos que nós podemos ocupar os três papéis ao mesmo tempo nessa nossa jornada.
Há uma discussão importante também de Jacques Lacan, psicanalista francês, sobre esse ponto, não vou a fundo porque não sou psicóloga, mas nessa mesma obra de Hall falando sobre identidades, ele destaca a visão do estudioso de que “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos pelos outros.” E sim, esse é um processo que se inicia lá na infância e que vai se consolidando em nós até a fase adulta. Logo, é natural que para nos entendermos enquanto pessoa, consideremos também essa opinião de fora. E aí vem a armadilha…
É como se buscássemos os rótulos externos para dar alguma coerência à complexidade de sentimentos e emoções que encontramos dentro de nós. O problema é que essas visões do outro são no fim apenas recortes - nem sempre fiéis, e nunca isentos, mas muitas vezes influenciados pelas experiências e forma de ser do outro - de nós mesmos. E nos apegar a essa visão exterior como se ela fosse a única verdade sobre nós é uma porta aberta para a dor e a insatisfação.
Só vamos nos sentir plenos e verdadeiros, quando abraçarmos essa “multidão de eus” que habita em nós. Já dizia o poeta Walt Whitman “I am largue, I contain multitudes”. Acredito que muitos dos momentos de crise que vivemos vem dessa dificuldade em abraçar todas as nossas facetas e entender que o contraditório pode, sim, habitar em nós. E isso faz parte da beleza que nós somos! É onde reside também nossa autenticidade.
Recentemente comecei a ler uma autobiografia de Aghata Christie, uma das minhas autoras favoritas, e logo no primeiro capítulo ela reflete: “Eu sou hoje a mesma pessoa que aquela garotinha séria de cachinhos claros enrolados feito salsichas. A casa em que a mente habita cresce, desenvolve instintos e gostos e emoções e capacidades intelectuais. Mas eu, a verdadeira Aghata, sou a mesma. Não conheço a Aghata por inteiro. Aghata por inteiro, creio eu, é conhecida apenas por Deus.”
Ela escreveu essas palavras aos 60 anos. Ler isso me trás um certo conforto e reforça que a jornada do autoconhecimento é dura, desafiadora, complexa e longa! Mas também pode ser encantadora e instigante se nos esforçarmos em silenciar algumas vezes nosso ego e formos mais gentis conosco mesmo, aceitando que, não importa o que façamos, seremos vilões, vítimas, heróis ou apenas figurantes na vida de alguém. Precisamos, portanto, focar onde reside nosso controle, nossas próprias atitudes e pensamentos, e extrair desses papéis os aprendizados que nos cabem, mas nunca nos prender a rótulos. Afinal, somos complexos demais para caber em uma caixinha. Ainda bem!